Divulgação/ Dona Ivone Lara – O Musical Segundo a família de Dona Ivone Lara (à esq.), recém-falecida, a sambista manifestou o desejo de que Fabiana Cozza a interpretasse em musical

Após a polêmica envolvendo a novela da Rede Globo “Segundo Sol”, ambientada na Bahia, mas com elenco majoritariamente branco, foi a vez da produção de um musical em homenagem à sambista recém-falecida Dona Ivone Lara ser alvo de acusações de estar preterindo artistas negros.

Depois de receber fortes críticas de que não teria a pele suficientemente escura para interpretar a homenageada, a cantora Fabiana Cozza declinou no domingo do convite que havia recebido na semana passada, com apoio da própria família de Ivone Lara.

“Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar ‘branca’ aos olhos de tantos irmãos”, escreveu na carta em que comunicou a decisão.

Filha de pai negro – Oswaldo dos Santos, puxador de samba da escola paulista Camisa Verde e Branco – e de mãe branca, Cozza tem longa trajetória como intérprete de samba, experiência com teatro e uma amizade de mais de duas décadas com Ivone Lara, cujas músicas já gravou e cantou diversas vezes. Segunda a família, a sambista manifestou ainda em vida o desejo de que ela a interpretasse no espetáculo.

Apesar disso, críticos à sua escolha afirmam que o racismo estrutural exclui negros de pele mais escura de espaços de visibilidade e defendem a importância de que Ivone Lara seja vivida por uma atriz e cantora negra retinta. A desistência de Cozza, porém, também acabou gerando forte indignação dos que viram um desrespeito à liberdade artística e à negritude da atriz.

O compositor Sérgio Santos, que teve músicas gravadas pela cantora paulista, diz que sua trajetória de valorização do samba, seu talento e sua proximidade com Ivone Lara a credenciavam para o papel.

“Entendo a questão política levantada pelo movimento negro, mas Fabiana é negra e sempre se colocou na defesa da negritude. Basta ver sua discografia”, afirmou à BBC Brasil.

Outro questionamento levantado por Santos é se apenas os muito negros poderiam se expressar artisticamente no sentido de fortalecer a cultura negra, em um país etnicamente miscigenado.

“A arte não é espaço da literalidade. Será que o Dorival Caymmi era suficientemente negro para falar da negritude da Bahia onde ele viveu? Será que o Pierre Verger que nem brasileiro era, e era um branco, não tinha legitimidade para fazer todo trabalho fotográfico que ele fez em cima do Candomblé?”, ponderou.

Em sintonia com o argumento de Santos, outras pessoas se manifestaram no sentido de que o teatro é um espaço em que todos podem representar qualquer personagem. O colunista Tony Goes, do jornal Folha de S.Paulo, chegou a chamar os críticos à escolha de Cozza de “ignorantes” por não entenderem esse princípio.

Os que defendem que Dona Ivone Lara seja vivida por uma atriz de pele mais escura, porém, não negam que a dramaturgia permita essa liberdade, mas argumentam que em uma sociedade estruturalmente racista isso jamais acontece no sentido de valorizar os negros,

“Quando Adriana Esteves é escalada para interpretar Dalva de Oliveira (em uma minissérie da Rede Globo), que era sarará, ninguém briga por isso, mas não vão escalar uma negra para fazer Dalva de Oliveira. Nem vão escalar um negro para fazer Noel Rosa (que não era negro). É uma liberdade de expressão que não inclui o negro”, ressalta a atriz Elisa Lucinda.

Divulgação/ Dona Ivone Lara – O Musical Artistas em audição para o musical que homenageia Ivone Lara; críticos a escolha para o papel da sambista defendem que ela seja vivida por atriz e cantora negra retinta

Nesse sentido, Lucinda considera as críticas à escolha de Cozza legítimas, e diz que o musical em homenagem à Ivone Lara seria a vez de dar espaço para uma atriz negra de pele mais escura.

“A Fabiana cita na carta uma música do Chico César e do (André) Abujamra que diz que a ‘alma não tem cor’. Mas acontece que nós estamos falando de corpos e um corpo tem cor, e bem definida essas cores na escala de valores da sociedade”.

Colorismo, a gradação do racismo

Em sua argumentação, Lucinda cita o “colorismo”. Esse conceito, cada vez mais estudado e debatido na academia e no movimento negro, busca evidenciar como o preconceito racial é mais forte e mais excludente quanto mais o fenótipo do indivíduo for afrodescendente, ou seja, pele mais escura, nariz mais largo, lábios mais grossos, cabelo mais crespo.

A advogada e militante Alessandra Devulsky, que atualmente escreve o livro O que é colorismo?, também defende que o ideal seria Ivone Lara ser representada por uma mulher de pele mais escura. Ela, porém, entende que o caso de Cozza tem nuances mais complexas do que uma situação evidente de colorismo como o da novela “Segundo Sol”, tanto pela escolha da família como pela própria negritude da cantora escolhida.

“Fico triste com o ataque violento que Fabiana, uma mulher negra e engajada, sofreu por parte do movimento negro. E me incomoda também que a vontade de uma mulher negra, a Dona Ivone Lara, não seja considerada”, disse.

O neto de Ivone Lara, André, expressou à BBC Brasil a frustração da família da sambista com a situação: “Ficamos tristes pela desistência da Fabiana, porém respeitamos a sua escolha. Foi um pouco pesado as críticas que fizeram a ela e a minha família, especialmente à minha mãe por ser branca, sendo ela a pessoa que sempre cuidou e zelou pela saúde e bem estar da minha vó… Infelizmente passamos por esse momento, o elenco do musical é 90% negro, os diretores todos negros e a artista homenageada foi uma negra, militante que nunca usou armas, agressões, para combater o preconceito e o racismo, mas fica a deixa para um debate aberto, limpo e sem ofensas ao tema”.

Ainda assim, Devulsky considera que o questionamento à escolha de Cozza é válido e que é importante problematizar o clareamento de personalidades negras na arte. Na sua visão, o melhor teria sido buscar um diálogo com a produção da peça e a família para que fosse feita uma audição com artistas negras de pele mais escura, para que ao menos fossem avaliadas outras possibilidades.

Maquiagem e prótese para Nina Simone

O debate gerado pelo musical sobre Dona Ivone Lara já aconteceu antes no Brasil e em outros países. Nos Estados Unidos, a direção do filme “Nina”, homenagem à cantora americana Nina Simone que estreou em 2016, escalou para o papel principal a atriz Zoe Saldana, de pele mais clara e traços mais finos que a diva do jazz. A atriz inclusive usou maquiagem para escurecer sua pele e prótese para deixar seu nariz mais largo nas gravações. A escolha gerou fortes reações, inclusive da filha de Nina, Simone Kelly, que também criticou o roteiro.

Já a atriz carioca Andréia Ribeiro, que desde 2015 interpreta no teatro a escritora mineira Carolina Maria de Jesus, em uma produção montada por ela própria, têm sido alvo de constantes críticas por ter a pele mais clara que sua personagem. À BBC Brasil, ela disse que pesquisou profundamente a obra e a vida da escritora e que seu objetivo era “tirar Carolina do Porão”. Nesse caso, o resultado agradou a filha da escritora, Vera Eunice.

“Eu não vi cor. Ela representou tão bem que eu só vi Carolina”, elogiou a filha à reportagem. “Qualquer coisa que resgate a história e coloque Carolina no auge para mim é válido”, disse ainda.

O produtor Jô Santana: 'Pensamos na representatividade que a artista teve em toda sua trajetória e na ligação pessoal entre a artista e a homenageada e sua família', escreveu o produtor Jô Santana sobre escolha de Cozza
Dona Ivone Lara – O Musical ‘Pensamos na representatividade que a artista teve em toda sua trajetória e na ligação pessoal entre a artista e a homenageada e sua família’, escreveu o produtor Jô Santana sobre escolha de Cozza

Ao contrário de Cozza, Andréia Ribeiro não renunciou ao papel apesar das críticas e já fez montagens da peça em Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Seu plano é levar o espetáculo a outras cidades, como São Paulo e Salvador. Ele diz, porém, que sofreu com as críticas e por isso entende a decisão da cantora paulista.

“É muito triste uma artista ter que se paralisar, se silenciar, porque é oprimida. Tem que ter muita força para continuar e resistir, não ser silenciada. Acho que devemos falar de representatividade, mas numa mesa da fraternidade e do olhar generoso, e não atrás de um computador, por trás de ofensas, se não a gente não avança”, disse.

Nas redes sociais, o produtor do musical em homenagem a Dona Ivone Lara, Jô Santana, também repudiou as manifestações violentas, embora tenha reconhecido que “as demandas do movimento que desencadeou a renúncia são legítimas”. Ele disse que uma nova atriz para o papel ainda será escolhida.

“Em respeito à indicação da família de Dona Ivone Lara, a única atriz convidada para o espetáculo foi Fabiana Cozza, os outros 21 atores foram selecionados via audições. Ao pensar em Fabiana, pensamos na representatividade que a artista teve em toda sua trajetória e na ligação pessoal entre a artista e a homenageada e sua família”, escreveu.

Fonte: BBC